João César das Neves
professor universitário
" Fala-se muito de uma hostilidade do Governo à Igreja. Não há real perseguição, mas sinais que alguns assim interpretam. O Ministério da Educação estrangula os colégios, ASAE e Segurança Social assediam creches e obras paroquiais, restringem-se os capelães, não se regulamenta a nova Concordata. Como tudo isto é feito sob capa formal e declarações pacificadoras, pode ter uma interpretação neutra. Agora porém é oficial: há mesmo um menosprezo pela fé católica.
No preâmbulo do Projecto de Lei n.º 509/X, sobre as "alterações ao Regime Jurídico do Divórcio", já apresentado e aprovado, o PS assume-o explicitamente: "O que está em causa não é necessariamente o abandono das referências religiosas, mas antes uma retracção destas para esferas mais íntimas e assumindo dimensões menos consequenciais em outros aspectos da vida."
Imaginem os senhores deputados que um dia se aprovava uma lei onde se dizia não estar em causa o abandono do PS, mas uma retracção dele para "esferas mais íntimas" e "dimensões menos consequenciais na vida". Ficariam os socialistas contentes com essa retracção para esferas íntimas? Aceitariam ser menos consequenciais na vida? Não interpretariam essa lei como uma forma de ataque e perseguição? É razoável os cristãos acharem o mesmo agora. E não se diga que não é a mesma coisa porque, se há diferenças, é que a religião é mais abrangente e influente que a ideologia.
O diploma apresenta duas motivações para essa atitude. A primeira é realista, constatando "três grandes movimentos que foram ocorrendo no decurso do século XX (...) sentimentalização, individualização e secularização". Se a sociedade é assim, que se há-de fazer? Mas essa justificação, aparentemente objectiva, é muito fraca. A lei agora apresentada não fica justificada pela evolução da realidade, mas pela interpretação política dessa evolução. No mesmo período verificaram-se muitas outras tendências sociais, como o aumento da droga, solidão e criminalidade. Será que, por serem movimentos reais e observáveis, são inevitáveis e devem ter leis que os promovam? A diferença entre eles é que a ideologia do Governo aprova os primeiros mas reprova os segundos. O PS acha que o divórcio deve ser facilitado e a droga combatida.
A coisa é ainda mais grave porquanto as análises científicas sérias mostram claramente que o divórcio e a degradação da família, causados pelas ditas sentimentalização, individualização e secularização, estão entre as principais causas do aumento da droga, solidão e crime. A lei promove aquilo que quer combater.
A outra justificação do texto é histórica. O referido preâmbulo, além de invocar pergaminhos científicos, também se arvora em juiz do passado. Em particular, "o projecto de lei que se apresenta pretende retomar o espírito renovador, aberto e moderno que marcou há quase cem anos a I República". É preciso coragem para alguém se apresentar hoje como herdeiro da I República, o maior desastre socioeconómico da história recente de Portugal. Que, além disso, criou a maior perseguição à Igreja desde Abd ar-Rahman II (emir de 822 a 852). Não há dúvida que, a um ano de eleições, o PS se arrisca bastante ao retomar esse suposto espírito "renovador, aberto e moderno".
Deve dizer-se que ao fazê-lo, se viola o espírito do 25 de Abril. Uma das principais diferenças entre as revoluções de 1910 e 1974, entre Afonso Costa e Mário Soares, é precisamente a hostilidade à Igreja, que o bem sucedido regime democrático actual recusou. Parece que Sócrates, esquecendo isso, está a ser forçado a preferir a maçonaria à democracia.
Esta hostilidade, agora franca e aberta, é boa para a fé. Uma perseguição faz sempre muito bem à Igreja, purificando-a e renovando-a. O problema está no que entretanto sofrem as crianças das escolas e creches, os idosos do centros de dia e obras sociais. Os serviços estatais, apesar das suas tendências totalitárias, nunca conseguem substituir as paróquias. Uma perseguição à Igreja, mesmo envergonhada, acaba sempre por prejudicar os pobres. "
Aqui está, como prometido, o comentário que o Pe. Nuno Tovar de Lemos escreveu no seu livro, acerca da afirmação "Todo o crente é um ateu".
«Tem-me acontecido frequentemente – conversando com alguém que se diz ateu – sentir-me de imediato numa total e sincera sintonia de pontos de vista com essa pessoa. Esse Deus que ele rejeita e afirma não poder existir, também eu rejeito e julgo sinceramente não poder existir.
Por isso não nos devemos impressionar se esse alguém diz não acreditar em Deus. Em que ideia de Deus não acredita? Talvez essa pessoa nos responda: “não posso acreditar num Deus que anda permanentemente atrás de nós para nos apanhar em falta e nos levar para o Inferno”. Ou então: “não posso acreditar num Deus que nos criou e depois nos deixou sozinhos com a nossa liberdade”. Terá toda a razão. Ainda bem que é ateu. Desse Deus eu também sou ateu. Esse Deus eu não acredito que exista ou que alguma vez pudesse existir.
Ou seja, ateus somos todos nós, os crentes. Somos todos ateus de falsos deuses. A verdadeira questão não é tanto saber se alguém acredita ou não em Deus mas em que Deus acredita ou que Deus rejeita. Dizendo isto em linguagem bíblica: ter fé implica sempre desconstruir “falsos deuses”, ídolos com forma de “bezerros de ouro”, que são meramente fruto das nossas projecções e dos nossos medos, como fez o povo de Israel no deserto (Ex 32).»